Dom
Murilo S.R. Krieger
Arcebispo
de Salvador e Primaz do Brasil
Antes que uma alma generosa,
lendo o título acima, se apresse em presentear-me com uma câmera digital, vou
logo me explicando: tenho uma, pequena e simples, que pouco faz além de tirar
fotos de sobrinhos e de paisagens. O problema é que não a levo comigo por aí.
Se a levasse, teria, nos últimos tempos, registrado cenas belíssimas. Lembro
algumas: Na Catedral, um garoto de quatro ou cinco anos estava sentado no chão.
Sua mãe, ajoelhada, com o rosto entre as mãos, rezava. Pelo filho? Ou era uma
oração de agradecimento? Ou louvava o Senhor, simplesmente porque Ele é seu
Senhor? Também o garoto rezava, só que a seu modo: olhava para o altar do
Santíssimo e parecia não pensar ou não dizer nada. Simplesmente olhava. Tenho
certeza de que, naquela tarde de sábado, todas as orações que se elevaram ao
Senhor foram de seu agrado. Mas alguma coisa que me diz que nenhuma lhe agradou
tanto como a daquele garoto. Uma oração feita de silêncio. Feita simplesmente
de um olhar. Do olhar de uma criança.
Faltando alguns minutos para o
início de uma reunião, uma jovem colocou as cadeiras em ordem, limpou a lousa e
ajeitou as flores no vaso. Pouco depois, começou a reunião. Todos se sentiam
bem, pois o ambiente era agradável. Ninguém soube quem o havia preparado. E era
preciso?
Chovia. Os degraus não eram
muitos, mas perigosos. Uma senhora idosa começou a descê-los com dificuldade.
Um senhor se aproximou dela, falou-lhe baixinho e, segurando-a pelo braço,
ajudou-a a descer. Quando chegaram embaixo, ele voltou a falar-lhe e
desapareceu na rua movimentada.
A enfermeira acabou de tomar a
pressão de um doente e lhe disse, animadamente: “Tudo bem!” Bem que ela queria
saber em que pensava aquele senhor de olhar distante. Parecia indiferente a
tudo. Quantos pacientes ela já havia atendido até àquela hora? Doze? Quinze?
Vinte e cinco? Não importava. Cada um era único. Cada um exigia dela uma
atenção especial. Dessa vez, não recebeu nem um “Obrigado”. Esperava, contudo,
que seu gesto levasse um pouco de alegria e paz ao coração daquele homem
fechado em seu mistério.
O bispo estrangeiro falava da
realidade que enfrentava cada dia, em seu pobre país: falta de recursos
econômicos, doentes que o procuravam como última esperança, estradas tão
esburacadas que ele nunca sabia se chegaria a tempo para a celebração
eucarística, igrejas necessitadas de uma reforma, poucas pessoas para ajudá-lo
em seu trabalho... Os olhares de seus colegas bispos, o carinho com que o
ouviam e as perguntas que lhe faziam demonstravam o desejo de participar de
seus problemas. Sensibilizado, o bispo agradeceu-lhes muito: tinha certeza de
que, dali para a frente, mesmo distante, poderia contar com a amizade e a
oração de todos.
Reunidos no auditório – nome um
tanto grandioso para a sala daquele humilde asilo – os idosos ouviam atentos
aquele que lhes falava. Estavam felizes. Nem se lembravam mais que, se fosse
alguns meses ou anos antes, estariam numa das ruas da cidade. Não se lembravam
de quem os levou para o lugar em que estavam; não se lembravam nem que, até
chegar ali, não tinham identidade, nem dignidade, nem amor. Agora estavam ali,
e sorriam. Tinha-se a impressão de que sempre estiveram ali. Se alguém lhes
falasse de anjos, não entenderiam que se trata de “criaturas puramente
espirituais, não-corpóreas, invisíveis e imortais”. Anjos, para aqueles idosos,
são quem os acompanha no dia a dia; quem lhes garante o pão na mesa; quem os
abraça com carinho e lhes pergunta: “Como vai, vovó? Como está, vovô?”
Foram cenas de uma semana
qualquer. Por que eu não tinha comigo uma câmera digital para registrá-las? Por
que não pude perenizar aqueles olhares, sorrisos e gestos? Mas será que alguma
foto conseguiria captar a riqueza daqueles momentos? Antes, não acabaria
banalizando aquelas situações? Foram cenas revestidas de um valor imenso porque
espontâneas e simples. O que não se pode esquecer – e isso é que é importante!
–, é que, aos olhos do Pai, nenhum daqueles momentos se perdeu. Estão todos
registrados no Livro da Vida, com fotos tais que fotógrafo algum conseguiria
tirar.
Fonte:http://www.cnbb.org.br/site/articulistas/dom-murilo-sebastiao-ramos-krieger/9515-se-eu-tivesse-uma-camera-digital